quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Vô Toninho e seu biquinho...dava um verso!

Tem uma figura da minha família de quem eu há muito gostaria de falar. Mas ainda não havia decidido de que maneira ia ser...Não queria nada pesaroso, dolorido ou triste. É só o que eu sei na verdade. Quando eu penso nele, penso em alguém que cumpriu uma etapa, com sucesso. Se tem algo que eu realmente desejo, é ter saúde e chegar aos noventinha... Ele foi o único avô que tive e foi um avô bem tradicional, de historinha mesmo, só não teve cabelos brancos. Pouco conheci ou soube, do homem que ele foi, do marido, do pai. Conheci o que me pertencia, que era o seu lado avô. Tenho muitas lembranças... Ele foi açougueiro, entre outras coisas, e foi nessa profissão que o vi trabalhando. Trabalhava em um supermercado, o único do povoado onde viviam, que ficava bem em frente à casa onde morava com a minha avó. Lá eu o via trabalhando pedaços imensos de carne, que depois arrumava no balcão. Eu ficava horas observando. As vezes ele me olhava e fazia um biquinho com a boca, como se fosse jogar um beijo. Eu ria. Tínhamos uma coisa em comum: gostar do silêncio. Podíamos nos comunicar perfeitamente sem palavras, sem perguntas, sem ruído. Eu o acompanhava no corte das carnes, olhando, me posicionando para não atrapalhar, o via entrar e sair da camara fria e me pegava pensando em como aquele boi ou aquela vaca tinham ido parar ali, pro prato de quem iriam... reparem que nesse tempo a vigilância sanitária não era nada rigorosa!!! Hehehe...Quando ele ia pro balcão, atender os clientes, eu ficava olhando de longe, geralmente estrategicamente posicionada em frente ao balcão dos iorgutes, dos flãs, pudins, etc. Quando ele terminava o serviço, vinha com um dos deliciosos potinhos na mão, que eu devorava antes mesmo de atravessar a rua. Não era preciso falar "obrigado vô", ele sabia.Me olhava, fazia um biquinho. Não era preciso dizer que estava muito bom, a gente sabia. Ele tinha uma rotina que eu ainda lembro bem nítida ao chegar em casa. Ia pra horta, onde andava de um canteiro a outro comigo atrás. Mas eu não andava do lado dele, assim junto. Eu ficava rodeando, mexendo na areia, achando um ou outro objeto perdido. As vezes, ele me mostrava alguma coisa, ou me explicava o que tinha feito em tal canteiro, o que era aquilo que estava brotando, mas em geral nosso melhor meio de comunicação era o silêncio, era o gesto. Quando ele entrava na casa, quase na hora de jantar, fazia uma caipirinha com limão colhido na horta e muito, muito açúcar. Tomava esperando a janta e trocando meia dúzia de palavras com a vó, ou alguém que estivesse junto. Depois me alcançava o copo vazio, (ou quase!) e fazia o biquinho com a boca. Lembro que eu ficava esperando, ainda muito pequena, para comer, de colherinha, o açúcar que sobrava no fundo do copo...hum...delicioso! Mais uma vez, reparem que as mães não eram muito rigorosas nesse tempo!!! Hehehe... Me lembro de o ver cochilando na frente da tv, e depois de o ver deitado ouvindo rádio antes de dormir. Outra imagem que me vem, é do tradicionalismo. Ele era atuante no CTG do lugar, e íamos toda a família aos eventos nos finais de semana. Como tesoureiro, ele ficava no "bolicho" vendendo bilhetes para o consumo e a vó ficava na cozinha, auxiliando com as batatas fritas, os pastéis feitos na hora, as queijadinhas...posso sentir o cheiro! Quando acabava o serviço, eles iam dançar, devidamente pilchados, como posso ver agora mesmo na minha mente, e em uma foto que ela guarda até hoje...juro que estou ouvindo aquele xote marcado... Essas imagens se repetiram por muitos e muitos anos como um filme bom que a gente revê sempre com vontade e marcaram a minha infância. Hoje vejo pessoas que sabiam aproveitar a vida, que davam a ela um propósito, que produziam, mesmo no que se chama terceira idade, período que muitos acham que é hora de parar. O sítio em que moravam mostrava essa produtividade: frutas, legumes e verduras da época em abundância( ahh as vergamotas no pé! os morangos! as ameixas!), flores e sombras bem cuidadas, pão assado, doces e vinho... Enquanto o corpo permitiu, ele produziu. Sempre em silêncio. Sem se mostrar, apenas com um risinho no canto da boca, uma satisfação meio disfarçada ao nos ver usufruir de tudo isso...Ah! E sempre com uma piada, uma adivinhação, um versinho... Além do silêncio que sempre prezamos, tínhamos outro gosto em comum: a leitura. Talvez esse tenha sido um hábito aprendido, uma herança da convivência, mas o fato é que compartilhamos nosso livros, jornais e revistas até o fim. Esse hábito ele manteve sempre, mesmo quando só os óculos não bastaram, onde uma lupa o auxiliava. Parou de ler pouquíssimo tempo antes de morrer, quando um dia se pegou com o jornal de cabeça pra baixo...e fez piada! De todas as lembranças que tenho, de tudo que aprendi com ele, de tudo que existe em mim e reconheço ser parecido com ele, o que mais eu agradeço foi a lição que ele nos deu no final. Já ouvi de pessoas que conviveram com ele quando era mais novo sobre uma certa prepotencia, um certo autoritarismo. Como já disse, só sei do avô que ele foi. Sei que sempre foi íntegro, honesto e trabalhador. No tempo em que ele viveu, algumas atitudes hoje consideradas incorretas, eram normais nos chefes de família. Falta de instrução, conceitos da época...etc. Mas acredito que na adversidade, na decrepitude do corpo físico, na proximidade do fim, o verdadeiro homem se mostra. E nesse momento onde muitos se refugiam na depressão, se deixam levar pela raiva, pela dor, se revoltam contra uma situação por vezes humilhante e passam a dificultar a própria vida e daqueles que o rodeiam. Não foi isso que eu vi. O silêncio se manteve. Nunca ouvi uma reclamação à cadeira de rodas, às fraldas, às dores. Pelo contrário. se fosse pra falar, ele contava uma piada, mesmo que não lembrasse o final...e ria do mesmo jeito. Ele fazia uma adivinhação... e ria gostoso por não saber a resposta... Fazia um versinho pra quem lhe dava banho, como fiz muitas vezes, e dava aquele sorriso debochado quando perdia a rima... Eu acho que pretendia com isso, nos deixar a vontade diante da situação. Muitas vezes tivemos acessos de riso juntos, quando eu o segurava e ele achava que eu perderia as forças... Sempre que eu o deitava na cama, aquele mesmo avô que sempre achava não precisar das palavras, dizia: "obrigado por hoje!" e me jogava um beijo de longe, fazendo biquinho com a boca. Dessas noites, eu saía maior, engrandecida pela sua grandeza. Era mesmo triste depender dos outros, mas ele estav sempre tranquilo, sereno, pronto pra fazer uma piada. Como a que fez qaundo seu soluço passou depois de receber a benção de um padre: "milaaaagre!!!" Estivemos juntos no hospital, no mesmo corredor. No dia da minha alta, foi o último dia que o vi. Eu sabia que ele estava terminando a sua "missão silenciosa", mas faltava uma última lição. Pensei que ele não me reconheceria, que não teria forças pra me ver, mas falei com ele e disse "tchau, beijo!" então ele abriu os olhos, levantou levemente a cabeça e fez o biquinho: estalou três beijinhos na minha direção. Não precisava mesmo dizer nada.